Ao folhear um livro de um
pediatra, encontrei uma frase que dizia, mais coisa menos coisa, que cada
criança é única porque é constituída por uma imensidão de factores biológicos, psicológicos
e mais uns tantos ógicos que não
decorei.
Continuei a passear pela livraria
e reparei na quantidade de livros, das mais insuspeitas classificações, que – a
avaliar pelo título – propunham soluções para problemas: como deixar de ter dificuldades
económicas, como fazer dieta, como agradar ao amor da sua vida, enfim… como
viver?
Além de ter saído do centro
comercial a sentir-me ignorante por nunca ter lido a maioria dos livros das
prateleiras, lembrei-me da minha aluna R. É uma miúda giríssima, com uns
factores biológicos bestiais; é estruturada, como aliás é toda a sua família, vê-se que é uma criança feliz. Tem uma predisposição natural para aprender e
não revela quaisquer dificuldades, é obediente (por vezes até
demais) nas tarefas escolares.
No entanto, há uma coisa que a R.
não gosta de fazer. E não a faz. Recusa-se mesmo, sem briga, sem revolta e sem
rebeldia. Olha para mim e diz-me calmamente «não faço, professora». Quase com
um sorriso desafiador… Os outros professores e eu dedicamo-nos com a natural
perícia de «especialistas em educação», semana após semana, a inventar
estratégias para que ela faça o que tem de fazer. Claro que na faculdade nos
falaram das teorias e dos estudos que, sem desprimor e sem querer simplificar, não resolvem o problema. E ela mantém o calmo sorriso e diz novamente
«não faço, professora». Por vezes, limita-se a abanar a cabeça, sem nunca
perder a pose.
Depois do meu inesperado encontro
com os factores a que o livro atribuía a unicidade de cada criança, não deixo
de pensar na R.; os factores ógicos
dizem alguma coisa dela, mas poderei eu afirmar com certeza que a soma dos
aspectos físicos e psicológicos, com as influências afectivas e familiares e
todo o meio envolvente, explica aquela miúda na totalidade? Ou será mais razoável
admitir que há alguma coisa na R. que eu não consigo explicar nem mudar, isto
é, que não está à minha disposição?
Claro, a R. é insegura e outras
explicações haverá mas, mais importante que isso, ela tem alguma coisa irredutivelmente misteriosa e, por isso, é única. Isso não me derrota nem me
isenta de educar. O desafio é mais ousado: educar para a liberdade, que não
significa fazer o que se quer, mas antes querer o que se faz. Como poderá a R.
querer fazer aquela coisa que eu penso ser boa para ela? Não sei. E não sabem
os ógicos nem os livros de soluções.
A boa notícia é que, apesar de
não ter uma receita, estou disposta a aventurar-me com a R. no fascinante
caminho da vida. Como viver? Assim: suspensos na plenitude.
Catarina Almeida
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