«Como se fosse Português»
Hoje pedi aos
meus alunos do 8º ano que imaginassem estar em Damasco quando Saulo encontra
Ananias. Em todas as aulas, procuro fazer exercícios de identificação com a
experiência do encontro com Jesus e os seus discípulos. Desta vez pensei que poderia despertar
a criatividade dos alunos: sabemos que a conversão de S. Paulo é um episódio extraordinário
mas… e aqueles que o viram chegar a Damasco, cego, à procura de Ananias, o
chefe da comunidade que Saulo queria perseguir? O que terão pensado os que lá
se encontravam? O que terão temido?
Perante a
dificuldade geral em perceber o objectivo do texto que lhes pedia, fui
explicando: imaginem que são um primo de Ananias, uma mulher que ia a passar e
ouve dizer que Saulo de Tarso, afinal, não os vinha perseguir. Ou que são o próprio
Ananias. Ou um amigo dele.
Até que um
braço insistente no ar me chamou a atenção… Professora, Professora! Pick me,
pick me… Diz, Teresa. «Eles não estão a perceber! Isto é Religião mas é para
fazer como se fosse Português, não é?». Pois é, Teresa. «Como se fosse
Português», sim.
Fiquei a pensar
e lembrei-me que, noutra turma, há algumas semanas, para lhes falar da
inquietação que caracteriza todos os homens, de todos os tempos, falei-lhes dos
gregos, dos romanos… E os miúdos disseram em coro: «Professora, mas isso é
História!».
Que coisa,
esta! Então abri as janelas da sala e pedi-lhes que viessem todos debruçar-se
(com cuidado!) a olhar para o edifício da frente: um edifício em forma de paralelepípedo
branco, rodeado de um jardim, com um parque de
estacionamento cheio de carros. Enquanto olhávamos lá para fora, passavam alguns
amantes da corrida, a alta velocidade, e alguns turistas: alemães, espanhóis,
franceses…
Perguntei aos
meus alunos: «Miúdos! E isto o que é? Matemática? É um paralelepípedo! Artes? É
branco, e verde, e o céu é azul! Não, é Ciências, não vêm que tem jardim?» E
continuei, pela Educação Física dos atletas, a Mecânica dos carros, as Línguas dos que por
ali passavam… E os meus alunos riram-se, claro.
Mas este
assunto não tem muito de divertido.
Embora «a
escola não tenha a tarefa de determinar a estrutura do real», a organização
curricular pode transformar-se numa enorme ameaça a uma experiencia concreta de
aprendizagem das disciplinas enquanto pontos de vista, janelas que se abrem
sobre a realidade. Mas a realidade é só uma.
As disciplinas
são perspectivas sobre o que existe mas a realidade não se esgota na disposição
actual dos saberes (que já foi outra, agora é esta, e não sabemos se assim
continuará). Ensinar uma disciplina, educar ensinando uma disciplina consiste
no acompanhamento dos alunos na trajectória do meu olhar (que é o da minha
disciplina) para um aspecto da realidade, mas que «não
garante a relação com o todo». Como propomos, através da nossa disciplina, uma experiência complexiva de relação entre os modos de olhar, sem prescindir da realidade como um todo?
Para educar
ensinando, a relação entre o meu ponto de vista, os pontos de vista dos outros
professores e a totalidade do real é um caminho tem de ser percorrido numa
escola que queira propor uma hipótese de significado da vida e do mundo, sob
pena de os alunos se tornarem escravos da esquizofrenia das disciplinas.
E não Teresa,
isto não é Português. É o mundo que eu própria estou a descobrir.
Gostava que as
minhas aulas se tornassem esse caminho de descoberta da realidade, porque a Religião
é uma maneira de interrogar a realidade, de lhe fazer perguntas, que vão sendo
respondidas à medida que caminhamos. Mas o Português interroga a mesma realidade com outras perguntas. E a Matemática com outras. As perguntas não são as mesmas, mas revelam respostas que se completam, que se cruzam e que traduzem a Beleza de um mundo cheio de coisas por aprender.
E essa estrada, essa sim, podemos percorrê-la
em conjunto. Eu, tu, os outros alunos e professores.
(nota: todas as citações são de Eddo Rigotti, em Conoscenza e Significato, tradução nossa)
Catarina
Almeida
Obg Catas pelo teu testemunho tão surpreendente e verdadeiro, Bjs Paulo Rebelo
ResponderEliminarCatas, que juízo tão forte, tão novo e tão bem ilustrado! Muito útil. Obrigada. Madalena Fontoura
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