11 de janeiro de 2016

"Era a própria presença do real que eu descobria", por Catarina Almeida

A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. (...)
Sophia de Mello Breyener Andresen, in Arte Poética III, 1964
Desta vez, decidi contar-lhes a história de Maria Judina, conhecida como a maior pianista russa do século XX. Ouvi falar dela pela primeira vez há uns anos, através de um documentário intitulado "A pianista que comoveu Estaline", e pensei que seria um bom contributo para as aulas que tinha de dar. 
 
Estava em cima da mesa um assunto delicado: o coração de todos os homens deseja o Bem, a Verdade, a Beleza, a Justiça. O Manel tinha dito: "Não. O do Hitler não". E a Mariana acrescentou: "E o dos terroristas de Paris também não."
 
Então contei-lhes um episódio da vida de Maria Judina. Conta-se que, certo dia, Estaline a ouviu tocar o concerto nº 23 para piano de Mozart. Comoveu-se. Conta-se ainda que morreu a ouvir a gravação que o tinha comovido naquele dia.
 
Os meus alunos ficaram surpreendidos por um dos ditadores soviéticos se comover a ouvir uma pianista tocar Mozart. Eu tinha preparado uma discussão sobre o tema, para que cada um pudesse confrontar-se com a questão, expor pontos de vista, procurar perceber melhor o que quer dizer que "o coração do homem é constituído por um núcleo de exigências e evidências originais, que não podem ser eliminadas".
 
De repente - e ainda bem - percebi que a questão era a experiência que podiam fazer. Só depois fazia sentido conversar. Então propus-lhes que ouvíssemos a gravação da Maria Judina, a mesma que Estaline ouviu. E os meus adolescentes efervescentes e combativos ouviram os primeiros dez minutos da peça, em silêncio e com uma atenção impensável. No fim, convidei-os a ensaiar um parágrafo que sintetizasse o que tínhamos aprendido. E o Manel disse sem hesitar: «aprendi que o meu coração é igual ao do Estaline».
 
Catarina Almeida
 

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